Artigo sobre a I República

A Iª REPÚBLICA COMO OBJETO HISTÓRICO
Em tempo de comemoração, uma reflexão desapaixonada sobre o significado histórico do 5 de Outubro e da I República.
por RUI RAMOS

     O centenário do 5 de outubro podia ter sido outra coisa. Ou, melhor, várias outras coisas. Podia ter sido uma re­flexão sobre a conceção do Estado co­mo uma comunidade de cidadãos li­vres, a viver sob o império da lei. Era isso a que os clássicos chamavam república, independentemente de o chefe de Estado ser electivo ou heredi­tário (e é neste sentido que a Inglater­ra é república e Cuba não). Também podia ter sido uma festa da atual república portuguesa, uma democracia em que, desde 1976, todos coexistem pacificamente, sem terem de decidir se preferem um presidente ou uma família real. Ou podia ainda ser uma oca­sião para investigar a história do golpe que há cem anos expulsou do poder a elite liberal que governara o país no século XIX.
Podia ter sido tudo isso, mas não foi. Em vez de uma reflexão, de uma festa ou de uma lição de história, tivemos uma polémica.
    Subitamente, exigiram-nos que nos dividíssemos. Não por causa do orçamento, mas por causa de coisas centenárias, de que a maio­ria terá apenas ouvido falar. Estamos contra ou a favor da chama­da "I República"? Contra ou a favor de Afonso Costa? A corrente favorável a Costa contou com o dinheiro dos contribuintes para a sua propaganda, enquanto a corrente contrária dependeu da ini­ciativa de cidadãos. Não teria sido melhor deixar a I República continuar como "objeto histórico"?
     USOS E ABUSOS DA HISTÓRIA
     A polémica confirmou uma curiosa inversão de opiniões. Durante o século XX, foram os chamados "monárquicos" que sobretudo disseram mal da monarquia constitucional derrubada em 1910, e as esquerdas que mais criticaram a república.
Monárquico, depois da década de 1920, quase se tornou sinóni­mo de integralista. Ora, para os integralistas, a monarquia acaba­ra em 1834, com a deposição de D. Miguel pelos liberais. A monar­quia constitucional não passara, segundo eles, de um regime maçó­nico, uma mera "antecâmara da república". Era a opinião de Antó­nio Sardinha. A República era a "balbúrdia sanguinolenta", mas a monarquia tinha sido a "ignóbil mentira".
Do outro lado, as esquerdas não foram mais benevolentes para a velha república. Agora sociais-democratas ou marxistas, as es­querdas olhavam os republicanos de 1910 como uma "burguesia jacobina" que se gastara a perseguir os católicos e a classe operária. Este divórcio agravou-se na década de 1960, quando importantes sobreviventes do velho republicanismo se puseram ao lado do Esta­do Novo na resistência à descolonização. Os revolucionários de 1974-1975 nunca se esqueceram, como esclareceu Vasco Gonçalves, que não tinham derrubado o Estado Novo para regressar "ao triste passado de antes de 1926". Eram os historiadores de esquerda que então, na universidade, vergastavam a memória republicana.
Quando é que tudo isto mudou? A retração intelectual do inte­gralismo e a queda do salazarismo deixaram um novo movimento monárquico, animado até por alguma resistência ao Estado Novo na década de 1960, redes cobrir a monarquia constitucional. À es­querda, a viragem não foi menos radical, O colapso do socialismo, na década de 1980, levou as esquerdas a importar a política cultu­ral de tipo americano. Alguns redescobriram o anticlericalismo republicano como um ingrediente oportuno em combates onde voltavam a enfrentar a igreja (aborto, etc). O centenário do 5 de outubro pareceu-lhes naturalmente uma oportunidade de impor à atual democracia uma matriz jacobina, anticatólica, de modo a reduzir os seus adversários a uma espécie de intrusos no regime.
     Para isso, projetaram no passado de há cem anos o atual contraste entre ditadura e democracia, fazendo da monarquia constitucio­nal um 'Estado Novo' e do 5 de outubro um '25 de abril'. Curiosa­mente, os críticos do centenário foram pelo mesmo caminho, mas com os termos de comparação invertidos, aproximando a I Repú­blica da ditadura salazarista através da perseguição à imprensa. É como se Portugal não tivesse outra história que não a dos últimos cinquenta anos.
   
     O FIM DE UMA HISTÓRIA
      No entanto, a interpretação histórica do 5 de outubro e do regime republicano exigem referências diferentes das da história recente. A república é incompreensível sem a revolução liberal de 1834 e a republicanizão da monarquia. Os liberais reduziram a monar­quia a uma 'república com um rei', hostil à antiga nobreza e ao 'ultramontanismo'. Depois da Regeneração de 1851, a esquerda ra­dical ficou incorporada no regime. Por isso, os republicanos puderam ter empregos do Estado, publicar jornais, manifestar-se, ga­nhar eleições. Ou seja, nunca estiveram perante a monarquia cons­titucional como a oposição das esquerdas perante o Estado Novo.
O 5 de outubro não foi o resultado de falta de liberdade, políti­ca ou religiosa, mas do impasse a que chegara a governação libe­ral. Aqui, a compreensão da revolução republicana não dispensa um estudo rigoroso da política portuguesa no princípio do século XX. A classe política perdera qualquer noção de fidelidade dinástica e habituara-se a 'fazer pressão sobre o rei da maneira mais direta. Era para isso, aliás, que servia o Partido Republicano. O assassínio de D. Carlos, em 1908, fez o novo rei, D. Manuel II, hesitar no uso das suas prerrogativas constitucionais a favor de um grupo político. Num parlamento onde ninguém tinha maioria, o resultado foram sete governos em dois anos, entre 1908 e 1910.
     D. Manuel, no entanto, tinha razão em ser tímido. Quando em junho de 1910 finalmente optou por apoiar a esquerda liberal, provo­cou a revolta da direita, que se distanciou completamente da mo­narquia. O governo da esquerda liberal contava com os mais im­portantes líderes republicanos, como Afonso Costa. Mas outros republicanos decidiram arriscar uma insurreição militar em Lis­boa, até porque o governo não se atrevia a reprimi-los, com receio de impossibilitar a colaboração de Afonso Costa. O insucesso do Governo nas eleições de agosto de 1910 abriu terreno ao golpe. Os conspiradores republicanos avançaram contra um governo de es­querda desanimado e inseguro, e contra o qual a direita também preparava um golpe.
O 5 de outubro não foi o resultado de uma qualquer conversão ideológica e mobilização geral da população, mas de uma dinâmica política que levou a elite política liberal a divorciar-se da dinastia.
     O Partido Republicano tinha militantes decididos nas ruas de Lis­boa, mas a participação em eleições e em manifestações era muito baixa. Em novembro de 1908, os republicanos ganharam a câmara municipal de Lisboa com 8000 votos, numa cidade de mais de 400 000 habitantes, aproveitando a abstenção dos liberais. De resto, a insurreição de 4 de outubro de 1910 foi um desastre: nem todos os militares comprometidos saíram e a população manteve-se passi­va. Os "carbonários" não eram 40 000, mas quando muito uns 900, dos quais só uma ou duas centenas terão estado armados. Mas surgiram, entre os militares sublevados, homens decididos, como Machado Santos e José Carlos da Maia, que puderam fazer a diferença perante autoridades sem grande vontade de defender o 'existente'.
    O COMEÇO DE OUTRA HISTÓRIA
      O primeiro aspeto da República foi o de um regime ordeiro e tole­rante. Não houve, para lá de alguns incidentes, grandes represá­lias. O capitão Paiva Couceiro, o único que combatera os republica­nos no dia 4 de outubro, apresentou a demissão - e não foi aceite. O Governo Provisório dedicou-se logo a perseguir e a expulsar as congregações religiosas, mas os liberais tinham feito o mesmo em 1834. Os oficiais do exército e os funcionários públicos aderiram em massa. À hierarquia eclesiástica, não lhe repugnava uma sepa­ração da Igreja e do Estado que a libertasse da tutela de um Estado que até aí controlara os seminários, as carreiras dos padres, a no­meação de bispos e dificultara o contacto com o Vaticano.
Foi esta falta de resistência que assustou os republicanos. Te­meram uma república dominada pela antiga. elite liberal, ajudada na província por um clero que essa elite ainda tinha nomeado. Trataram de defender-se. Inspirados pelo radicalismo francês, aplicaram ao clero uma lei dita de Separação, mas que visava sub­metê-lo ainda mais ao Estado. Adiaram eleições e quando as fize­ram, criaram o ambiente certo para dissuadir candidaturas de fora do partido republicano: intimidaram a magistratura, limita­ram a liberdade de imprensa, perseguiram o clero, confrontaram violentamente os sindicatos de trabalhadores urbanos e invadi­ram as aldeias do norte com tropa. O objetivo foi garantir o mono­pólio da direção do Estado, segundo o princípio de que "o país é para todos, mas o Estado é para os republicanos". Alguns, entre os quais Paiva Couceiro, convenceram-se de que este exclusivismo violento tornaria uma restauração bem-vinda no país. Daí as 'in­cursões monárquicas' a partir da Galiza. Apenas serviram para justificar ainda mais repressão. Em 1912, havia mais de 2000 pre­sos políticos, sujeitos a um regime penitenciário degradante.
Foi a partir do Estado, usando a administração e as forças armadas, que o Partido Republicano se propôs dominar o país. O campeão desse monopólio foi Afonso Costa, que, depois de colabo­rar com o último governo da monarquia, soube fazer-se o chefe do radicalismo e dominar o partido republicano. Em 1913, restringiu o direito de voto, de modo a obter um eleitorado pequeno e facil­mente manipulável pelo Governo. Dispôs sempre de milícias arma­das para atacar adversários e recuperar o poder pela força quando este lhe escapava, como em 1915.
A chamada "direita republicana" e os principais líderes do 5 de outubro; como Machado Santos, propuseram, contra Costa, uma "república para todos os portugueses". Mas uma verdadeira rotação no Governo, que fosse além das pequenas remodelações minis­teriais que ressalvavam o poder de Costa, era impossível. O que empurrou todos os adversários de Costa para a conspiração e o golpismo. A intervenção na I Guerra Mundial (1914-1918), geral­mente vista como mais uma manobra de Costa, acabou por agra­var o ambiente de guerra civil. A república alternativa dirigida por Sidónio Pais em 1917-1918, depois de derrubar Costa, não durou, nem pôde ser menos violenta. Os seus protagonistas pagariam com a morte o desafio ao monopólio radical (Sidónio em 1918, Machado Santos em 1921).

    EM DIREÇÃO AO ESTADO NOVO
     A república portuguesa foi sempre um regime estranho na Euro­pa ocidental: antes de 1917, por ser a segunda república moderna e, após a viragem conservadora da república francesa por volta de 1911, a única radical; depois de 1918, por ser dos poucos regimes sem sufrágio universal masculino, que só Sidónio Pais introduziu, para ser abolido pela regressada oligarquia republicana logo em 1919. O problema do regime não foi a 'instabilidade' (ou a 'desor­dem'), como é costume dizer, mas b domínio violento do Estado por um partido radical. A forma republicana do Estado esteve em causa apenas na medida em que consubstanciava esse poder radi­cal e o seu exercício terrorista.
A revolução republicana significou uma mudança de gerações na elite. Não significou uma maior participação da população. Sob o domínio do Partido Republicano, houve menos eleitores e me­nos votantes do que antes de 1910. Nos cadernos eleitorais da repú­blica em relação à monarquia, diminuíram os trabalhadores ma­nuais. De resto, pouco mudou. Para quem queria contactar a admi­nistração, continuaram a ser precisos empenhos e favores junto de uma elite de homens instruídos e da classe média. A polícia tratou sempre a população mais pobre com brutalidade. Às mulhe­res, o regime negou sempre qualquer estatuto político.
A I República, sem sufrágio universal, sem eleições justas e sem rotação pacífica no poder, não faz parte da linhagem da atual democracia. Também não foi equivalente ao Estado Novo, por lhe faltar uma ideologia de rutura com o liberalismo e uma máquina de repressão legal ao mesmo nível. Na década de 1920, afastado
Afonso Costa, os novos líderes do Partido Republicano, como An­tónio Maria da Silva, permitiram-se uma maior tolerância, embo­ra sem abrirem mão do poder. Mas na conjuntura do pós-guerra, com a emergência do comunismo e do fascismo e uma grande contenção financeira, que liquidou o investimento público, essa nova política não deu origem a uma 'Regeneração' como a de 1851, mas à cisão final do Partido Republicano, abrindo a porta à Ditadu­ra Militar (1926-1933).
Para essa transição, contou o ambiente de guerra civil gerado pelo domínio exclusivista e arbitrário do Partido Republicano, que tornou aceitável a repressão e o uso da violência contra adversá­rios políticos. Contou também o modo como o domínio radical pôs em causa, pelas reações que provocou, à hegemonia política e cultural da esquerda que vinha do século XIX. Foi sob a república que emergiu uma nova cultura de nacionalismo tradicionalista, que não existia com significado antes de 1910, e que constituiria o oxigénio intelectual do salazarismo. A República não 'justifica' o Estado Novo, mas explica-o.

 In Revista Actual, Suplemento do semanário Expresso, 2 de Outubro de 2010, pp. 36 a 38.